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Stregheria em Desalma

novembro 6, 2021

No Brasil ainda há muitos que descobrem alguns termos frequentes no paganismo através de séries e filmes. É um erro comum, pois adaptações para as massas nunca vão ter a força das práticas e leituras. Também há pessoas que possuem um medo enorme do desconhecido, isso inclui qualquer religião que não seja cristã ou adicione mais informações como o espiritismo. Não faz sentido que um país com o sincretismo presente no Brasil ainda tenha medo de religiões de matriz africana ou pagãs, já que elas só crescem no Brasil devido ao fascismo que entrou com os dois pés nas igrejas cristãs. Isso não generaliza as igrejas, mas tampouco nos livra de acreditar no que quisermos sem sofrermos perseguições diversas. Para toda ação há uma reação, faz pouco tempo que houve um reavivamento de queima de igrejas na Europa, o que nos faz crer que talvez estejamos em um núcleo de mudanças parecido com o cristianismo quando tentou regular a antiga religião na Europa, o que inclui a Stregheria, que chegou aqui na forma de feiticeiras “disfarçadas” de cristãs. A cultura pop expôs isso de forma mais ou menos pontual em “Game of Thrones” e talvez tenha feito isso com a série “Sabrina”, que embora as pessoas cismem que assisto eu nunca vi, assim como “Supernatural”. Para mim tudo partiu das leituras e mais recentemente, das vivências que tenho como o que é considerado fora do normal por leigos. Claro, que também gosto da cultura pop, mas ela no geral mais me distrai que ensina. Mesmo assim, de vez em quando achamos algumas pérolas como “Desalma”, idealizada por Ana Paula Maia, com diretores João Paulo Jabur, Pablo Müller e Carlos Manga Júnior. Os roteiristas são incríveis, os atores também, o que faz dessa série uma das mais imperdíveis que já vi.

Strega, a velha religião

A Strega é conhecida como bruxaria italiana e possui ocorrências desde 1313 d.C. Na tradição romana, é narrado que Aradia foi enviada por sua mãe Diana à Terra. Diana era considerada deusa das bruxas e fadas, Aradia foi responsável pelo florescimento da religião pagã entre os seres humanos.

Recentemente vi Desalma, antes de estrear na tv aberta, no primeiro capítulo já nasceu a vontade de escrever esse post. Portanto, se você não viu a série, saiba que tem spoiler aqui.

Logo no início vemos uma consulta da personagem Haia Lachovicz (Cássia Kis) e uma cliente, que nos dá a entender que é uma amarração amorosa, ou seja, algo para manter alguém que você está interessado conectado a você. Ao acender uma vela na janela, Haia diz a cliente que seu pedido é simples, mas há consequências. Que tudo tem suas consequências. E na parte que considero uma das mais interessantes da série, ela explica que tudo é reversível, inclusive a morte. A cliente se espanta, perguntando se há formas de trazer alguém de volta da morte. Ela responde:

” – Se tiver paciência…o tempo é uma invenção que usamos para controlar a vida. A morte é uma ilusão, assim como o tempo. Tudo que existiu uma vez jamais deixará de existir.”

Os adolescentes implicam com a bruxa da localidade: mais atual que nunca.

Assim como a encantadora mitologia eslava, o paganismo ricamente ilustrado, está ao lado do cristianismo. Em várias cenas, como a cena em que Haia vai a um bar beber, está passando a notícia de Chernobil, enquanto em cima está a imagem de Jesus Cristo e Maria. Você sabia que a dualidade é uma característica muito presente nas crenças eslavas? Chernobog é uma mistura da palavra “cherny” que significa preto e bog quer dizer deus. Byelbog, de byely, significa branco, o deus da luz e das forças criadoras. Mais tarde essas duas forças seriam classificadas como o Diabo e Deus, na herança do cristianismo, mas originalmente o dualismo era oposto, essas forças eram tidas como complementares e não opostas.

Dualidades do panteão eslavo

Quando Vladimir I se converteu ao cristianismo, estátuas de deuses pagãos foram atiradas no Rio Dniepre. Da mesma forma, a maior parte dos registros de gravuras e escritos foram destruídos. A Stregheria, apesar de ser ligada aos cultos romanos, possui essa herança da dualidade pagã. As bruxas tiveram que se “misturar” aos cristãos, eram rezadeiras, benzedeiras, serviam à comunidade. Por isso apesar de serem consideradas servas de Satanás pela Igreja, eram admitidas nos povoados pois muitos se serviam de suas habilidades. Isso fica bem claro em uma conversa da personagem Anele e o padre de Brígida ( a cidade fictícia tem o nome relacionado à Brigid, deusa do panteão celta, “senhora da inspiração iluminada” dos poetas):

Brígida do panteão celta

Segundo o padre da cidade, personagem de Jonas Bloch, em conversa com Anele (Isabel Teixeira): -A raiz do mal é muito perigosa, despertar Ivana Kupala. Ela (Haia) é uma mulher que não era bem-vinda na cidade, mas acolhemos, mesmo sendo adoradora de Satã. Eu não gosto dessa festa pagã, mas como as pessoas gostam (da cidade) tenho que ser flexível. Ivana Kupala acontece em 21 de junho, dia mais escuro do ano, é o equivalente ao Yule da roda do ano celta/pagão.

A festa de Ivana Kupala

A filha de Haia, Halyna

Em Brígida aconteceu um evento macabro, que todos temem ao celebrar novamente a festa na região. Os mais velhos viveram o evento e carregam o peso nas consciências e os jovens se empolgam ao reviver novamente a tradição que convivem todos os dias. Como diz Halyna (Anna Melo) em determinada cena: “- (A festa) é coisa de bruxa, né?!”

Roman mais velho na cena da cachoeira e com a cabeça posicionada do lado direito de Halyna, quando jovem (os acontecimentos dos jovens são centro da trama).

Como diz a pesquisadora Thaís Cianca (doutora em Ciência da Religião pela UNICAP), a Strega sempre viveu nas florestas, partilhando com escravos libertos e trazendo esperança aos camponeses explorados pelos senhores feudais. Dianus, o deus com chifres romana era associado ao diabo no cristianismo. Jules Michelet no nsaio “A Feiticeira”, fala que a bruxa enquanto “emissária” do demônio, representa o espírito da revolta contra o Estado, a nobreza e a Igreja. Os mitos denunciam através do imaginário a construção de processos históricos de dominação e opressão. Isso fica bastante focado nas diferenças entre a Haia e sua filha Halyna (família pobre) e os poderosos da cidade, a família Skavronski (a mais rica da cidade). A famíla Skavronski depende de Haia e ao mesmo tempo faz coisas terríveis com ela.

Boris, Roman, Ivan e Aleksey xeretando onde não devem.

Na cidade de Brígida, também é retratada a ligação com a natureza que os habitantes e a bruxa possuem. Os eslavos possuem um panteão de deuses animistas, que habitam o céu, a Terra, a Lua, a água e o vento. Ainda hoje essas crenças pagãs se misturam com as cristãs, é conhecida como “fé dupla”, a “dvoeverie”. Além disso, diferente de outros tipos de paganismo que adotam como família a comunidade como o Heathenry ou Asatrú, a Strega se dá no nível familiar, isso fica claro quando Halyna recebe ensinamentos da mãe. Geneticamente há uma herança da bruxa verde, aquela que é ligada à natureza e pela genética. Isso é notável quando a Haia fala que a bruxaria está nos genes de seu sobrinho (policial), mas que ele é muito cético para acreditar.

Stregheria é algo familiar, diferente da noção de comunidade. É passado aos membros da família e é geneticamente herdado. Por isso o brasileiro tem muito a ver com Strega, quem não tem uma tia, mãe ou avó que sabe de simpatias, chás, xaropes, oferece previsões que no futuro são confirmadas? São verdadeiras stregas sem lapidação.

Outro ponto incrível da série é a forma como retrata o acidente nuclear de Chernobil, já que os habitantes de Brígida são descendentes de ucranianos. Os diálogos mais interessantes estão com Boris, Haia (Cássia Kis) e Iryna. Iryna por exemplo, diz que: “… bruxas voam, mas não é um voar comum, é uma viagem astral”. Na viagem astral podemos sair dos nossos corpos e flutuar, às vezes encontrando pessoas. A Baba Yaga é a bruxa do folclore eslavo.

Representações da Baba Yaga

Outro elemento que aparece na série como sensitivo, são os animai, os porcos e o cavalo. Boris em um diálogo com a recém chegada Giovana (Maria Ribeiro), em resposta do porquê gosta de porcos, responde: “- Você sabia que os porcos não podem olhar para o céu? Anatomicamente eles não conseguem. Depois descobrimos através de Anele (Isabel Teixeira), uma parábola que faz um forte sentido ao motivo pelos quais os porcos da criação de Boris estão morrendo: A passagem bíblica de Mateus 10, quando Jesus permite que os demônios que estavam nos homens possam entrar nos porcos para que tenham paz. Posteriormente, vemos que Boris já se interessava por animais, quando em uma aula da escola em 1988, ele comenta que leu no jornal da cidade que podem nascer peixes com duas cabeças e sapos com três pernas. Ele continua contando que em Chernobil, na localidade de Pripyat, um bezerro nasceu com o rabo na testa.

Lucas Soares e Ismael Caneppele, dão vida ao desafiador Boris Burko.

Iryna (Nathália Falcão), uma jovem que acredita piamente nos misticismos de Brígida

Outro elemento que a série traz de forma muito rica, é a transmutação, chamada de transmigração. Presente na alquimia, ela pode ocorrer de um elemento químico para o outro, ele é aplicado nos princípios da genética e elementos nucleares.Ao longo da evolução isso era considerados tanto no sentido material quanto espiritual.

Transmutação de elementos

Haia explica que muitos poderosos viveram séculos transmigrando de corpos, possibilitando que um corpo velho e debilitado mudasse de forma transmigrando para outro ser humano através da alma. A alma nunca morre, ela sempre permanece. Através do menino Anatole, alguém morre e quer tomar posse do corpo do menino. A Haia explica que tudo se transforma (um conceito de Lavoisier), inclusive a alma que continua vivendo no ar. Somos átomos, tudo é átomo. Ela diz, Halyna nunca se foi, apesar de ter morrido.

Ignes Skavronski (Valentina Ghiorzie e Claudia Abreu)

Outro personagem incrível é Ignes, pedagoga que possui uma sensitividade enorme e um grande caráter, muitas vezes é tratada injustamente como desequilibrada por suas perturbações psicológicas devido aos traumas que viveu e está vivendo. Ela é incrível e dona de frases maravilhosas na série como esse diálogo que trava com Giovana (Maria Ribeiro) sobre seu ceticismo: – Você nunca viu algo te olhar, te rondar? E quando você olhou não havia nada lá…Você não passou a acreditar um pouco em Deus ou no Diabo?

Fechando essa série incrível, temos o mito das mávkas das lendas ucranianas. Na série elas são apresentadas como lindas jovens virgens/nunca batizadas, espíritos de luz, que morreram em situação de violência e voltam vingar sua morte. Ela ama água, seu cabelo é longo e enfeitado com flores, quando ela corre não possui sombra. Segundo Haia, a água é um ótimo condutor de energia sobrenatural, com ela você traz limpeza energética e flui qualquer feitiço. Por isso nosso corpo, a Terra, possuem tanta água.

Mávka, ilustração de Ekaterina Borisova

Estudar as religiões e culturas diferentes das nossas enriquece o repertório cultural e educa a respeitar crenças diferentes das nossas. Simbolicamente o mito da bruxa representa todas as mulheres que possuem a coragem de viver conforme sua vontade em um mundo ainda dominado pelas regras do patriarcado.

Vídeo editado por Mary Suan – a neta da medusa (youtube) – Música Karliene – Witch (Ative cc na parte superior direita para ver as legendas)

Falando em música, as músicas da série estão no Spotify e são incríveis, aproveitando a década de 80 para tocar músicas fora da do circuito atual, como Sigue Sigue Sputnik, Sepultura, Replicantes, além de bandas ucranianas, músicas folk e a trilha sonora feita especialmente para série por Alexandre de Faria. Aproveite!

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2 Comentários leave one →
  1. Caroline permalink
    novembro 7, 2021 8:12 pm

    Adoro seu blog! Esse post foi um presente. Vinha muito na minha mente, nas últimas semanas, o livro Arádia. Ai me bater com esse post foi uma interessante coincidência.

    • novembro 11, 2021 6:36 pm

      Obrigada Caroline! Seu comentário me motiva muito, fico feliz que tenha gostado. Fique de olho, pois prepararei mais posts nessa linha, inclusive o segundo sobre a série (ainda há muita informação) e a Stregheria.

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